quinta-feira, 22 de março de 2012

A canção (infantil) não é uma arma, é um filme de terror

Leio hoje que uma educadora de um jardim de infância na Ericeira alterou a letra da canção "Atirei o Pau ao Gato" a seu bel prazer, incluindo na mesma a frase "viva o Benfica". Após o tradiconal "Vai-te embora pulga maldita" a senhora juntou "batata frita" e "viva o Benfica".
Um pai, adepto de outro clube que não o Benfica, sentiu que a alteração viola ou "o respeito pela diferença e pela individualidade, o fomento da pluralidade de gostos e o civismo" e apresentou queixa no Ministério da Educação. Segundo a notícia que li, que cita a agência Lusa, a educadora terá reagido dizendo, e cito, "quem está mal mude-se", aludindo ao facto de na classe de 13 crianças apenas duas não serem adeptas do Benfica.

Podendo a questão parecer patética, não o é. Tenho para mim, e em total acordo com a minha mulher, tomada a decisão de não influenciar o meu filho a ser do clube A ou do B, nem mesmo a gostar de futebol. Claro que não vou disfarçar os meus gostos, mas sendo eu de um clube e a minha mulher de outro, não faremos campanha para ele ser do A ou do B. E não é por acaso que a primeira camisola que ele recebeu, com o seu nome estampado nas costas, até é de outro a que podemos aqui chamar C.

A nossa ideia é que se ele gostar de futebol deva gostar por desporto. Mesmo torcendo por um clube, que seja capaz de apreciar o que de bom os outros fazem, o que de mau o seu fizer. Isto, insisto, se gostar de futebol.

Ora, é fácil de perceber, pois, que no lugar do pai da criança também eu não acharia qualquer graça à situação. Se eu não induzo o meu filho a ser de um clube, que direito terá a senhora educadora de fazê-lo por mim? Porque é engraçado? Para quem é engraçado? E se na turma existirem 11 crianças muçulmanas a professora deverá passar às outras os valores do islamismo? Parece-me fácil de perceber que não, que perante este exemplo a própria diria que não, e possivelmente até se recusaria a fazê-lo (até porque provavemente professará a religão católica).

Dizer a senhora, e volto a citar, "quem está mal mude-se" não é de todo incorrecto. O problema principal é que quem está mal não está a entendê-lo e não vai mudar-se. Assim, espero sinceramente que o Ministério da Educação a mude rapidamente, a bem da educação das crianças, de preferência para um local onde seja impedida de cantar.

E agora a parte em que falo do terror nas canções infantis

O problema das cantorias infantis, aliás, há bastante tempo que me apoquenta e me faz pensar. Na verdade, por vezes parece-me que as canções infantis em Portugal não foram escritas, ao contrário do que seria de supor, por avós babados e cheios de carinho. Ou melhor, podem até ter sido, mas além de babados e cheios de carinho estes avós tinham, seguramente, um sentido de humor retorcido e um riso maléfico. Talvez tenham os autores das canções infantis portuguesas sido os grandes inspiradores do admirável cineasta Tim Burton, tão afamado pela exploração de universos negros.

Se a canção "atirei o pau ao gato" mostra apenas um lado insensível e abrutalhado, que termina com a constatação de que (infelizmente, pode depreender-se) "o gato-to-to, não morreu-eu-eu", e passa ainda pela pulga maldita que chora e grita (ou batata frita/viva o Benfica, é escolher), outras há que apenas me fazem lembrar o velhote que viajando num autocarro suburbano vê uma criança com lindos caracóis e decidindo entabular conversa lhe diz: "ah, que grandes caracóis! amanhã trago uma tesoura e corto-te o cabelo"; ou a velhota que vê um menino a brincar com um pião e lhe diz algo do género "ah, que pião tão lindo, vou roubar-to".

Não sei se muita gente pensa sobre isto, se muitos consideram disparatado o tipo de humor com que supostamente "o português" tenta aproximar-se d'"a criança". Na verdade, basta-me colocar no DVD uma das compilações musicais do meu filho para perceber que desde pequeno se semeia o terror e o medo naquelas pobres almas, em vez de com elas se celebrar a alegria da vida.

Temos por exemplo a linda falua que vindo de Belém tem um barqueiro sádico, preparado para separar uma família. Ainda por cima uma família que vive com dificuldades. Note-se:

"Eu peço ao Senhor Barqueiro
que me deixe passar,
tenho filhos pequeninos
não os posso sustentar.

Passará, não passará,
algum deles ficará,
se não for a mãe à frente,
é o filho lá de trás."

Se não bastasse, há ainda o pobre João que fica sem o balão. Pior que ficar sem o balão é passar da alegria à tristeza:

"O balão do João
Sobe, sobe, pelo ar
Está feliz o petiz a cantarolar
Mas o vento a soprar,
Leva o balão pelo ar,
Fica então o João a choramingar."

Ainda na onda do sofrimento menor - por não ser grave - há o Manel, que nunca há de ser um Cristiano Ronaldo por causa de um maldoso cão. Esta canção, no entanto, sofre de outro problema. É sádica do princípio ao fim, e ainda apresenta como requinte supremo a frustração de não poder jogar à bola e tentar compensá-lo com uma canção para crianças.

"O Manel tinha uma bola,
que rolava pelo chão
na calçada ela rebola,
deu-lhe uma dentada um cão

[refrão]
Olha a bola Manel,
olha a bola Manel
foi-se embora, fugiu
olha a bola Manel,
olha a bola Manel
nunca mais ninguem a viu

O Manel tinha uma bola,
mas por falta de atenção
lá deixou ele ir a bola
entre os dentes de um cão

O Manel tinha uma bola
mas agora não tem não
e a gente a ver se o consola
vai cantar esta canção"

Outra particularidade do canconetismo infantil português é a necessidade urgente de rimar, mesmo que nada faça sentido, quando aplicado a crianças. Por exemplo, que o diga a desgraça Amélia, bebé que além de apesar de beber café vive com frio - mais um exemplo claro de terror psicológico:

"Lá estava a Amélia no corredor
Tão pequenina a tocar tambor.

Lá estava a Amélia na chaminé
Tão pequenina a tomar café.

Lá estava a Amélia no buraquinho
Tão pequenina a fazer caldinho.

Lá estava a Amélia no arvoredo
Tão pequenina cheia de medo.

Lá estava a Amélia no campo só
Tão pequenina metia dó.

Lá estava a Amélia à beira do rio
Tão pequenina cheia de frio."

Mais azar, no entanto, tem o desgraçado do Barnabé, talvez por ser pretito...

"O pretinho Barnabé, tiro-liro-liro,
O pretinho Barnabé, tiro-liro-lé.

A saltar quebrou um pé, tiro-liro-liro,
A saltar quebrou um pé, tiro-liro-lé.

Salta agora só num pé tiro-liro-liro,
Salta agora só num pé, tiro-liro-lé."


Num registo diferente, temos a história do casamento de um sapo. Que bom, não é? Sempre dá para desanuviar... Que bom, o sapito à beira rio! Vá, tem frio, é verdade, mas aparentemente nada de mau pode acontecer a um sapo que está à beira de um rio e que vai casar-se. Ora vejam lá:


Sapo, sapo, sapo
À beira do rio
Quando o Sapo canta
É porque tem frio
A Dona Sapinha
Deve estar lá dentro
A fazer rendinhas
Para o casamento
Ao passar a ponte
A ponte tremeu
Coitado do sapo

Jacaré comeu

Prometo, posto isto, que vou puxar pela imaginação e em breve sugerir a letra para uma canção infantil ao nível das mais conceituadas que aqui mostrei.

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