domingo, 18 de março de 2012

A memória que nos engana


(a propósito de um post no À Procura da Terra do Nunca)

- A Ignorância, de Milan Kundera
- O Sentido do Fim, de Julian Barnes



Parece-me pacífico que por muito bem escrito que seja um livro; por muito bem conseguida que seja a história que conta; será muito melhor se conseguir levar-nos, durante a leitura - e depois, claro - a reflectir sobre frases do autor, como se estas fossem - e talvez sejam - o que realmente importa reter, como se todo o livro tivesse sido escrito para que aquelas duas ou três ideias pudessem ser imortalizadas e assim tocar, individualmente, cada um dos leitores.

Milan Kundera e Julian Barnes, nos livros "A Ignorância" e o "Sentido do Fim", respectivamente, conseguiram provocar em mim a reflexão sobre o que são realmente as memórias que guardamos da vida. Acredito que raramente nos lembremos do que aconteceu tal como aconteceu, razão aliás pela qual a História, enquanto ciência, exige distanciamento temporal e emocional do objecto de estudo, para que a verdade histórica não seja manipulada - ou para o que o seja, como sempre é, o mínimo possível.

Várias vezes na vida vibrei já com o entusiasmo da antecipação de um reencontro, outras entediei-me perante a ideia de voltar a estar algum tempo à conversa com pessoas de quem não tinha grande ideia. Se na maior parte das vezes o encontro correspondeu ao esperado, não foram poucas aquelas em que me surpreendi. Aquele amigo de infância cujo nome ainda usamos como pergunta de segurança para recuperar palavras-chave na internet pode, afinal, ser hoje, se o reencontrarmos, o mais distante de todos aqueles com quem nos cruzámos nos primeiros anos de vida. Da mesma forma, já me aconteceu cruzar-me com uma rapariga lindíssima, reparar nela, estranhar que ela atravessasse a estrada e a mim se dirigisse e, num repente, perguntar-me: "Tu não és o Y? Não andaste na Secundária X, na turma C? Não eras o número 13?". Sim, sim, sim, acho que sim... "Lembras-te de mim? Sou a Z?". Pois, na verdade não me lembro. "Costumava sentar-me na terceira fila, ao lado da H, que era a número 15, lembras-te?". Pois, que sim, apesar de não.

Na altura em que tal me aconteceu nem fiquei a pensar no assunto - tirando o facto de, adolescente, as minhas hormonas terem dado uns quantos saltos e o meu cérebro nunca me ter perdoado pela forma sincera como admiti o desconhecimento absoluto sobre quem era aquela brasa, aniquilando assim qualquer possibilidade de um dia vir a conhecê-la melhor, o que é um belo eufemismo descrever para o que me terá, então, passado na cabeça.

Hoje, volvidos vários anos, volto a não saber o nome, a cara e tudo o mais da agora senhora e, como é óbvio, tal não me faz qualquer diferença. Acredito, no entanto, que se ela voltasse a cruzar-se comigo poderia ainda lembrar-se de todos os detalhes.

Há, afinal, gente com memoria prodigiosa. A minha mulher, por exemplo, é uma dessas pessoas bafejadas pela felicidade de conseguir recordar cada detalhe de tudo o que lhe importa, contando-o depois com tantos pormenores que chegaria a dar para escrever um livro. Diga-se que para alguém com fraca memória como eu, este é o casamento perfeito: tenho sempre um contador de histórias disponível, dos bons, e com uma tremenda vantagem: com uma boa gestão das histórias consegue ter sempre algo de novo para me revelar, mesmo que já o tenha feito há um ou dois anos.

Deixando o atalho para voltar à estrada principal deste texto, facilmente se confirma as ideias de Kundera e de Barnes. De forma resumida, que a história (dos povos ou de cada pessoa) tem sempre duas versões. A dos vencedores e a dos vencidos; a dos apaixonados e a dos não apaixonados. E por vezes isso pode ser incrivelmente cruel. Ainda que belo, como um poema negro da vida.

2 comentários:

  1. A memória, tal como o amor, move-se por caminhos misteriosos :)

    Cá cheguei, através do 'À procura da terra do nunca' e vou passar a seguir.

    Cumprimentos

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